Águas Tormentosas
Nathan Stone, SJ *
Toda a amargura, irritação, cólera, gritaria, injúrias, tudo isso deve desaparecer do meio de vós... Sede bons uns para com os outros, sede compassivos; perdoai-vos mutuamente, como Deus vos perdoou por meio de Cristo.
(Ef 4,31-32)
Não existe nenhuma verdade de fé que não possa ser transformada em objeto de idolatria. O bezerro de ouro não está longe do santuário, senão, ai mesmo dentro. Quando os ensinamentos teológicos e catequéticos em si se transformam em venerados objetos de devoção, há que reconhecer que são obstáculos para a santidade. O teólogo alemão, Hans Urs Von Balthasar, dizia que a idolatria é o pecado original do povo de Deus, sua tentação mais forte, uma tendência que brota da religiosidade mesma. O povo quer ter um deus que possa manipular.
Na mesma linha, não existe nenhuma causa ou bandeira - por boa que seja - que não possa ser ideologizada, reificada, elevada aos altares como finalidade em si mesma. Procuram-se adeptos dispostos a vestir a camisa, gritar seu refrão e morrer na luta; sem fazer perguntas, nem observações, nem sugestões. As figuras icônicas são aquelas que alcançam tirar fotografias com o melhor rosto de Che Guevara. Quando abre a boca, recita as fórmulas predeterminadas com precisão e ênfase. Deve, pelos outros, dar indícios de convicção total, para ajudar a credibilidade.
Ausente em toda esta tragédia grega é a razão. Os processos procedem em segredo. Não há acusadores nem defensores nem provas, só amigos da causa, e inimigos para ser purgados, pois, exige-se pureza no grupo. Os piores enchem-se de intensidade apaixonada, e os melhores se vão à guilhotina. Os ídolos sempre exigem o sangue do povo. As ambições de muitos dependem da ferrenha defesa ao indefensível.
Nenhum grupo humano se pode considerar exceção. Acontece nas melhores famílias, até na mesma Igreja. O novo povo de Israel herdou a predisposição idolátrica. Enfrentada com opiniões contrárias, a Santa Mãe tende a aplicar disciplina em vez de convencer com calma por meio de razões e argumentos melhores. Não entram nem fundamentos profundos nem transcendência mística.
Pelo mesmo, há tantos fanáticos, alguns ortodoxos e outros rebeldes, cada um com sua causa sagrada. Existe pouco diálogo, pouca transparência e muito decreto pela força da autoridade. Neste clima, ninguém se atreve fazer teologia séria. É como oferecer-se para trabalhar pela liberté, égalité et fraternité durante o Reino do Terror. Não fica mais que mover a bandeira e gritar a consigna (o refrão); fundamentalista ou progressista, segundo o seu ídolo de preferência.
São Paulo diz que os ídolos não são nada no mundo. Entretanto, com suas promessas falsas de plenitudes efêmeras, possuíam as pessoas. O povo possuído fica como aquele menino endemoninhado. Quando lhe dão seus ataques, lança-se ao fogo sozinho. Jesus vem para salvá-lo. O amor é mais forte. O pão de vida é sustento real.
Em um barco cruzamos de Belém à Ilha do Marajó semana passada, para participar da ordenação dum companheiro. Foi uma viagem devagar de cinco horas. No trajeto para lá, a baía se voltou tormentosa. Movia-se tudo, de lado a lado, para arriba e para baixo. Quem ficou dentro do barco, embaixo dos lençóis, logo ficou mareado. Alguns tiveram muito tontos. Se foram deitar nas redes e ficaram mais tontos ainda.
Eu tampouco me sentia muito bem. Lembrei uma coisa que me tinha ensinado meu avô, que no barco abatido, a gente tem que fixar a olhada no horizonte. Assim, melhora. Assim, foi. Na viagem de volta, coloquei-me acima da escala, onde mais se move, no entanto, olhando o horizonte. Não senti nada mareado. O vovô tinha razão.
Algo semelhante acontece com o barco ao qual Jesus convoca. Pode haver tormenta. Se por medo, o povo fica acoitado dentro, olhando para si mesmo, se vai desorientar e vai ficar mareado. Por outro lado, quem se atreve a subir acima da coberta e olhar além de tudo, além da sua própria causa, além da sua própria convicção pontual, até o horizonte do Reino de Deus, até às necessidades reais da multidão faminta de vida... Esse recupera a calma. Assim, o povo pode chegar tranquilo a seu destino.
njs.sj.amdg
TO.19.2012.B.Águas tormentosas
1 Reis 19,1-8, Salmo 33, Efésios 4,30-5:2, João 6,41-51
Nathan Stone, SJ *
Toda a amargura, irritação, cólera, gritaria, injúrias, tudo isso deve desaparecer do meio de vós... Sede bons uns para com os outros, sede compassivos; perdoai-vos mutuamente, como Deus vos perdoou por meio de Cristo.
(Ef 4,31-32)
Não existe nenhuma verdade de fé que não possa ser transformada em objeto de idolatria. O bezerro de ouro não está longe do santuário, senão, ai mesmo dentro. Quando os ensinamentos teológicos e catequéticos em si se transformam em venerados objetos de devoção, há que reconhecer que são obstáculos para a santidade. O teólogo alemão, Hans Urs Von Balthasar, dizia que a idolatria é o pecado original do povo de Deus, sua tentação mais forte, uma tendência que brota da religiosidade mesma. O povo quer ter um deus que possa manipular.
Na mesma linha, não existe nenhuma causa ou bandeira - por boa que seja - que não possa ser ideologizada, reificada, elevada aos altares como finalidade em si mesma. Procuram-se adeptos dispostos a vestir a camisa, gritar seu refrão e morrer na luta; sem fazer perguntas, nem observações, nem sugestões. As figuras icônicas são aquelas que alcançam tirar fotografias com o melhor rosto de Che Guevara. Quando abre a boca, recita as fórmulas predeterminadas com precisão e ênfase. Deve, pelos outros, dar indícios de convicção total, para ajudar a credibilidade.
Ausente em toda esta tragédia grega é a razão. Os processos procedem em segredo. Não há acusadores nem defensores nem provas, só amigos da causa, e inimigos para ser purgados, pois, exige-se pureza no grupo. Os piores enchem-se de intensidade apaixonada, e os melhores se vão à guilhotina. Os ídolos sempre exigem o sangue do povo. As ambições de muitos dependem da ferrenha defesa ao indefensível.
Nenhum grupo humano se pode considerar exceção. Acontece nas melhores famílias, até na mesma Igreja. O novo povo de Israel herdou a predisposição idolátrica. Enfrentada com opiniões contrárias, a Santa Mãe tende a aplicar disciplina em vez de convencer com calma por meio de razões e argumentos melhores. Não entram nem fundamentos profundos nem transcendência mística.
Pelo mesmo, há tantos fanáticos, alguns ortodoxos e outros rebeldes, cada um com sua causa sagrada. Existe pouco diálogo, pouca transparência e muito decreto pela força da autoridade. Neste clima, ninguém se atreve fazer teologia séria. É como oferecer-se para trabalhar pela liberté, égalité et fraternité durante o Reino do Terror. Não fica mais que mover a bandeira e gritar a consigna (o refrão); fundamentalista ou progressista, segundo o seu ídolo de preferência.
São Paulo diz que os ídolos não são nada no mundo. Entretanto, com suas promessas falsas de plenitudes efêmeras, possuíam as pessoas. O povo possuído fica como aquele menino endemoninhado. Quando lhe dão seus ataques, lança-se ao fogo sozinho. Jesus vem para salvá-lo. O amor é mais forte. O pão de vida é sustento real.
Em um barco cruzamos de Belém à Ilha do Marajó semana passada, para participar da ordenação dum companheiro. Foi uma viagem devagar de cinco horas. No trajeto para lá, a baía se voltou tormentosa. Movia-se tudo, de lado a lado, para arriba e para baixo. Quem ficou dentro do barco, embaixo dos lençóis, logo ficou mareado. Alguns tiveram muito tontos. Se foram deitar nas redes e ficaram mais tontos ainda.
Eu tampouco me sentia muito bem. Lembrei uma coisa que me tinha ensinado meu avô, que no barco abatido, a gente tem que fixar a olhada no horizonte. Assim, melhora. Assim, foi. Na viagem de volta, coloquei-me acima da escala, onde mais se move, no entanto, olhando o horizonte. Não senti nada mareado. O vovô tinha razão.
Algo semelhante acontece com o barco ao qual Jesus convoca. Pode haver tormenta. Se por medo, o povo fica acoitado dentro, olhando para si mesmo, se vai desorientar e vai ficar mareado. Por outro lado, quem se atreve a subir acima da coberta e olhar além de tudo, além da sua própria causa, além da sua própria convicção pontual, até o horizonte do Reino de Deus, até às necessidades reais da multidão faminta de vida... Esse recupera a calma. Assim, o povo pode chegar tranquilo a seu destino.
njs.sj.amdg
TO.19.2012.B.Águas tormentosas
1 Reis 19,1-8, Salmo 33, Efésios 4,30-5:2, João 6,41-51
Nenhum comentário:
Postar um comentário