O JUDAISMO DA COMUNIDADE DE MATEUS DO SÉCULO I

Bernardo León Mercado, S.J.

Introdução

Quem é o autor do Evangelho de Mateus? Tradicionalmente se atribuía a autoria ao apóstolo Mateus, o coletor de impostos (Mt 9,9). Mas as pesquisas atuais asseveram que o texto final foi redigido por volta do ano 80-90, o que significa que o apóstolo Mateus dificilmente estaria vivo até então.

Hoje em dia se afirma que o autor do Evangelho de Mateus considerava-se judeu e que sua comunidade, para quem escreveu, era uma comunidade judaica reunida em torno de Jesus de Nazaré.

Neste artigo tentaremos desenvolver, a vôo de pássaro, a lógica que explicita tais avanços nos estudos sobre a identidade da comunidade mateana do primeiro século.

O Judaísmo com Templo

Antes do ano 70 d.C., o Judaísmo era um corpus mixtum (corpo misto), uma religião plural, multiforme e nada monolítica. O Judaísmo daquele tempo congregava sob seu nome uma diversidade de tendências judaicas: os saduceus, fariseus, escribas, essênios, zelotes, comunidades de seguidores de Jesus Cristo...

Como se distinguiam uns dos outros? Estes “judaísmos” estavam agrupados segundo os seus pontos de vista, isto é, contra ou a favor do Templo, do sacerdócio, da interpretação da Torá e da ocupação romana. Por exemplo, os essênios discordavam do sistema religioso do Templo, interpretavam a Torá segundo a situação da sua comunidade e resistiam à dominação romana mediante a não violência.

O Judaísmo sem Templo

No ano 66 d.C. houve em Jerusalém um levante armado contra a reduzida presença imperial na região. As causas da revolta eram múltiplas. No começo a rebelião foi um sucesso. Muitos dos grupos judaicos, inclusive os mais moderados, aderiram à luta. Mas todos esqueceram que o Império Romano não demoraria a reagir com toda sua força bélica.

O conflito –– conhecido como a “Primeira Guerra Judia” –– durou aproximadamente quatro anos (66-70). Nesse período, além de lutar contra o exército imperial, os judeus entraram numa espécie de guerra civil. Por exemplo, no final da guerra, os zelotes liderados por João de Giscala, tomaram o controle do Templo e mandaram matar todos os sacerdotes.

Para pôr fim a todos esses distúrbios, o exército do Império Romano, no ano 70 d.C., ocupou a cidade de Jerusalém e incendiou-a. Mais ainda, as forças imperiais destruíram o Templo de Jerusalém, outrora eminente centro religioso-administrativo da sociedade judaica.

As conseqüências da investida romana foram catastróficas. Várias das tendências judaicas desapareceram. Os saduceus e essênios deixaram de existir. Ao tomarem notícia da crescente vitória imperial, e não querendo cair nas mãos dos vencedores, os zelotes se suicidaram coletivamente em Massada. Entre os sobreviventes da guerra estavam os fariseus e escribas que se refugiaram em Jâmnia, e os judeu-cristãos, que tinham se abrigado em Pela, na Transjordânia.

A impossibilidade de convivência entre gêmeos fraternos

A Jerusalém antigamente considerada “Cidade Santa” agora arrasada, a destruição do Templo, outrora núcleo da vida judaica, o desaparecimento do Sinédrio que era o Grande Conselho religioso-jurídico reconhecido pelas autoridades romanas, em síntese, o fim do Estado-Templo, desencadeou uma grande crise nos sobreviventes à catástrofe do ano 70 d.C.

Os grupos remanescentes ficaram desnorteados e entraram em conflito entre si. Nesse contexto, tanto o judaísmo formativo –– liderado pelos fariseus reunidos em Jâmnia –– como o judaísmo mateano –– comunidade de seguidores de Jesus Cristo –– disputaram a liderança do Judaísmo.

Entre os anos 70 e 100 d.C., o judaísmo formativo foi desenvolvendo uma série de padrões comuns para as festas, orações, leis relativas à pureza ritual etc. Também foi determinando o cânon dos livros sagrados. Essa forma de judaísmo aos poucos foi ganhando considerável aceitação entre os judeus.

Aos poucos, o judaísmo formativo ia se tornando cada vez mais intolerante com os que não aceitavam sua proposta. Assim foi inserido nas “Dezoito bênçãos” pronunciadas pelos judeus, a cada manhã, a “bênção contra os hereges” (birkat há-minin). Nesta oração se pedia que não houvesse esperança para os apóstatas e que seus nomes fossem suprimidos do livro da vida.

  Em face à intransigência do judaísmo formativo, a comunidade de Mateus encaminhou-se para a ruptura com seu irmão gêmeo. Mas isso não significou a renúncia ao Judaísmo, pelo contrário, a comunidade mateana manteve firme sua certeza de que toda a tradição de Israel encontrava sua plenitude em Jesus Cristo (Mt 5, 17).

Continuação

O breve percurso que temos feito até agora pode se sintetizar na seguinte afirmação: a comunidade mateana do século I era uma comunidade judeu-cristã. Comunidade judaica, porque ela fazia parte do Judaísmo plural do Segundo Templo. E comunidade cristã, porque ela interpretava a Torá à luz dos princípios do amor e da misericórdia herdados de Jesus Cristo.

Estes parágrafos tentaram mostrar a identidade da comunidade de Mateus por fora. Mas quem eram os membros da comunidade? O que acontecia no interior da vida comunitária? Como estavam organizados? Essas são algumas das perguntas que demandam um novo artigo.

Prezado leitor e leitora, não é um erro de digitação que tenhamos colocado continuação em lugar de conclusão. Este pequeno artigo é apenas um “aperitivo” para abrir o desejo no conhecimento da comunidade de Mateus, cujo evangelho chegou até nós como o texto que faz uma excelente conexão com o Antigo Testamento, além de ser a narrativa mais completa e didática sobre Jesus Cristo.

Para um conhecimento amplo do tema apresentado sugerimos as seguintes leituras:

GOMES, J. B., O judaísmo de Jesus – O conflito Igreja-Sinagoga no Evangelho de Mateus e a

                          construção da identidade cristã. São Paulo: Loyola, 2009.



OVERMAN, J. A., O evangelho de Mateus y o judaísmo formativo – O mundo social da comunidade de

                                Mateus, São Paulo, Loyola, 1997.



VITÓRIO, J., “Cristologia em contexto de conflito. O caso Mateus”, Convergência 33 (1998) pp. 45-61.



__________ , “O discipulado cristão segundo Mateus. A figura de José (Mt 1,18-25)”, Convergência 39

                        (2004/nº 378) pp. 589-607.

Um comentário:

  1. Olá, Bernardo!! As suas palavras aumentaram o meu desejo de conhecer ainda mais a comunidade de Mateus. Muito obrigado!

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